Procura-se um filho
- Mara Cornelsen
- 18 de jun.
- 3 min de leitura
Ela se olha no espelho e certifica-se que já não existem mais cabelos escuros na sua outrora vasta cabeleira. Todos brancos e ralinhos, de fio a pavio! Pudera, já nem consegue lembrar da idade que tem. Vez por outra um fato histórico lhe vinha à mente e, se encontrava alguém para compartilhar a lembrança, inevitavelmente ouvia: "Nossa, eu nem tinha nascido quando isso aconteceu!" Foram tantas vezes que desistiu de contar, de tentar conversar. Seus assuntos não interessam a ninguém. Nem mesmo ao seu único filho, que a largou ali, um lugar tão frio e sem memórias.
"Por onde anda meu filho?", é a pergunta frequente que faz às atendentes do asilo onde reside há alguns anos, contra a sua vontade. Nunca quis sair de casa, nem vender móveis ou doar roupas. Queira ficar no lugar em que construiu sua vida, idealizou seus sonhos e realizou muitos deles. Era uma lutadora tenaz. Não costumava aceitar os reveses e sempre dava um jeito para tudo. O importante era trabalhar, sustentar e proteger o filho único.
Não queria que o garoto passasse por perrengues como ela havia passado desde a infância. Ele era sua luz e ela era o porto seguro dele. Foram bons e belos anos de convivência. Mas ela começou a envelhecer. Surgiram as primeiras rugas, dificuldades para andar, os olhos sempre atentos a tudo já não ostentavam a mesma luminosidade. A memória começou a falhar, lembrava das coisas de antigamente, mas não das de ontem. Passou dizer "no meu tempo era assim" e a pedir ajuda ao filho para certas modernidades que não conseguia aprender sozinha, como usar a tal da internet e o telefone celular.
Ela não tinha preguiça de aprender. Pelo contrário, queria muito saber fazer tudo sozinha, desde que alguém tivesse paciência para ensinar e repetir os ensinamentos algumas vezes, até pegar o jeito. Queria contar com o apoio do filho, como ele contou com o dela para aprender a andar, a comer, a se vestir, a tomar banho, a ir para a escola, e a tudo o mais. Era uma equação simples: Eu o ensinei, agora ele me ensina!
Só que na vida dele não havia mais tempo para ela. "Agora não posso! Depois te ensino! De novo? Só mais tarde!", eram as expressões que mais ouvia ao pedir ajuda. Foi se desiludindo e se calando, pensando que o melhor mesmo era não incomodar. Ele tinha muitos afazeres, coisas importantes. Ela já não tinha nenhuma importância. Estava velha e não queria passar por rabugenta.
Até que um dia ele apareceu com a novidade. Iria morar no exterior. Conseguir melhores empregos, salários compensadores, a vida de rico como sempre desejou. Mas, para isso precisava de um dinheirinho para a mudança, um impulso para o começo. Só a mãe poderia lhe ajudar. Com muito jeito e conversa ele a convenceu a vender a casa que moravam. Afinal, o quê uma velha como ela iria querer com uma casa grande, de três quartos, uma vez que iria viver sozinha. Coitada! Fez o que não queria e vendeu o imóvel, considerando que o importante era ver o filho feliz.
Ele prometeu que iria arrumar um lugar muito legal para ela morar, com gente da mesma idade e vontades semelhantes. Iludida, pensou num deste resorts para a terceira idade, com algumas mordomias e algum lazer. Ou até mesmo numa quitinete mais modesta, mas com uma cuidadora que lhe atendesse no básico de todos os dias. Nada disso aconteceu. Quando se deu conta já estava no asilo, na periferia da cidade, sem ao menos um televisor em seu quarto ou um simples celular, para que pudesse se comunicar com o restante da família. Estava isolada, triste, deprimida.
As atendentes faziam o necessário, com ordens de não se apegarem a ninguém. Tinha muita gente para cuidar e a expectativa é de que gente velha morra rápido. Não se deve desenvolver sentimentos mais aprofundados para não sofrer depois. "Ridículo isso", pensava ela, "como se eles também não fossem ficar velhos".
O tempo passou e o filho nunca mais voltou. Chegou a retornar para a cidade natal, mas não dava tempo para ver a mãe. Tinha amigos para visitar, trabalhos para fazer e passagem comprada para retornar. Ela definitivamente não fazia mais parte da vida dele. Uma lástima. Ainda tinha tanto amor para dar! Seu viver passou a ser de saudade e de lembranças.
Um dia rabiscou num pedaço de papel "procura-se um filho" e colou na porta do quarto. Sua forma de protestar. Na mesinha de cabeceira deixou uma carta em que pedia para ser sepultada assim que morresse. Sem alerde, sem velório e sem chamar ninguém. Se não era importante em vida, não o seria na morte. Iria embora como chegou ao mundo, sozinha!

Essa crônica me tocou…
A ganância, diferente de ambição e quando usada a qualquer preço, deslacera as relações.
A ausência que cala, o descaso que desorienta e a distância que vai virando parede… tudo isso dói em quem ama de verdade. Quem parte nem sempre entende o quanto o silêncio arde em quem espera.
O que machuca nem é a distância geográfica, mas sim a ausência de tempo, de presença, de cuidado.
E o mais curioso, talvez até simbólico, é que esse filho também pode ser pai. E, no fundo, eu torço pra que ele nunca sinta essa ausência...Mas que perceba a tempo, o valor de estar perto — mesmo estando longe.
Te amo. Tô aqui.
Com carinho,
Flávia
Prima eu por escolha nunca quis ser Mãe e evidentemente não avalio na prática o que uma Mãe que se vê na situação do personagem desta cronica sinta, mas como ser humano sinto por ela e tenho visto muitos casos destes, muito reais e apesar de parecer ficção não são. Pais que são o tudo dos filhos, passam noites acordados cuidando do seu bem estar quando envelhecem são esquecidas como algo sem valor que só não jogam de vez por não ter onde descartar. Triste realidade de tantas vidas. Amo as tuas crónicas e teu estilo de derramar pelo papel as tuas ideias de uma maneira tão significativa e de fácil entendimento mas com imensa veia poética que nos f…