O enterro de Gilda
- Mara Cornelsen
- 1 de out.
- 3 min de leitura

Dia destes vendo um noticiário na TV sobre a Boca Maldita, no coração de Curitiba, observei a existência de uma placa de bronze em homenagem à Gilda, a mais famosa travesti da cidade, morta em 1983. Então um filme passou pela minha cabeça, recordando o rosto dela, o jeito de andar e rir, e o medo que eu sentia de encontrá-la na Rua das Flores. Menina ainda, ouvia dizer que ela cuspia "Giletes" guardadas na boca, caso não fosse com sua cara ou não lhe desse uma moeda.
Eram muitas as histórias sobre Gilda, a maioria não passava de invencionices de quem não gostava dela, quer por preconceito quer pela abordagem que ela costumava fazer junto aos rapazes, aproximando-se de sua "vítima" com o chavão "uma moeda ou um beijo". E se não ganhasse a moeda tascava o beijo na cara do infeliz que saía correndo atrás de uma torneira para se lavar, temendo pegar alguma doença. Por conta disse apanhou várias vezes e precisou também correr da polícia, quando era denunciada pelas algazarras. Foi presa em várias ocasiões.
Seu nome de batismo era Rubens Aparecido Rinqueu. Nasceu em 1950, no interior do Paraná, em Ibiporã. Como veio parar na Capital não se sabe - diziam que foi acompanhando um circo -, mas seu mundo era a Boca Maldita, onde reinou nos anos 70 e início dos 80, desfilando, cantando, gargalhando e desafiando a conservadora sociedade curitibana. Era pobre, por isso pedia dinheiro para não dar o beijo. Andava com roupas doadas, rasgadas ou sujas, e não estava nem aí para o quê achavam disso.
Sua felicidade era o Carnaval de rua, quando se esbaldava em cantorias e se divertia com outras travestis e artistas performáticos da época. E foram justamente estas travestis que se apresentavam em boates da cidade, - entre elas Primavera Bulcan, já falecida -, que tentaram cuidar de Gilda quando apareceu muito doente e já sem forças para reagir. Ela morreu em 1983, na marquise de uma casa abandonada, sua derradeira moradia. Ao lado de corpo ficou um prato de comida, ultima tentativa de uma de suas amigas de fazê-la se alimentar.
O corpo foi levado para o Instituto Médico Legal e o atestado de óbito dizia que a morte ocorreu por broncopneumonia, cirrose hepática e meningite. Resultado trágico da vida desregrada, temperada com cachaça e talvez algumas drogas. Nenhum familiar reclamou o minguado cadáver, fato que comoveu as travestis e também o radialista e vereador eleito para seu primeiro mandato Algaci Tulio. Juntos conseguiram um caixão simples e uma cova rasa no Cemitério Santa Cândida, que tinha uma ala destinada aos chamados indigentes.
O cortejo saiu do IML direto para cemitério. Sem velório ou despedidas. Lembro bem, apenas três carros atrás do rabecão funerário: um fusca da emissora de rádio em que Tulio trabalhava, dirigido por ele mesmo; outro veículo ocupado por três travestis e por fim o fusca da Tribuna do Paraná, onde ia eu, o fotógrafo e o motorista. Sete testemunhas do sepultamento sem pompas nem circunstâncias, sem uma flor ou uma placa. Apenas uma cruz improvisada e o prato de comida intocado, aquele mesmo encontrado ao lado do corpo. "Coitadinha, nem conseguiu fazer a última refeição, por isso trouxe a comida até aqui", explicou Primavera, deixando o prato no chão, enxugando suas lágrimas.
Atualmente o jazigo tem uma tampa de mármore escuro, com uma inscrição lembrando Gilda, e onde estão sepultadas outras seis ou sete pessoas, inclusive Primavera.

Ilustrações do quadrinista André Caliman - Livro 'Uma Moeda ou Um Beijo' com roteiro de Leonardo Melo e publicação pela Editora Conrad, 2025.